*** Somente a Graça Perdoa
os Pecados ***
“Pois pela graça de Deus vocês
são salvos por meio da fé. Isso não vem de vocês, mas é um presente dado por
Deus. A salvação não é o resultado dos esforços de vocês; portanto,
ninguém pode se orgulhar de tê-la”. (Efésios
2.8-9)
1 – Introdução
A doutrina da salvação pela graça foi fundamental
para o restabelecimento da doutrina bíblica no tempo da Reforma. Essa doutrina
sempre incomodou o ser humano. Ele sempre se sentiu desconfortável em saber que
sua salvação não depende de si mesmo, mas exclusivamente de Deus, que a concede
graciosamente, não por mérito. Gostamos de tomar nossos assuntos em nossas
próprias mãos. É por isso que essa doutrina nos incomoda tanto. Sempre foi
assim, como os intermináveis debates sobre o tema ao longo da história deixam
bem claro. Na Idade Média, porém, o abandono dessa doutrina alcançou seu ponto
mais alto. Seu resgate foi feito pela teologia reformada.
2
- Missas em Favor dos Mortos
Na medida
em que a igreja foi se distanciando da simplicidade dos tempos apostólicos, em
que os cristãos “partiam o pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com
alegria e singeleza de coração” (At 2.46), a
Ceia do Senhor foi adquirindo uma interpretação cada vez mais requintada. Na
mesma medida em que a simplicidade do evangelho foi sendo perdida, uma ampla
variedade de cerimônias foi sendo acrescentada.
Inicialmente,
as pessoas que participavam da Ceia tinham que se preparar para ela apenas por
meio de um auto exame, como orienta o apóstolo Paulo (1
Co 11.28). Com o passar do tempo, essa preparação começou a envolver o
lavar das mãos e das roupas. No começo, cada participante pegava seu bocado de
pão com as próprias mãos. Depois, passou a ser servido em um pano de linho ou
em um pires de ouro. Mais tarde, no século 11, passou a ser servido diretamente
na boca do participante, que aguardava de joelhos diante do altar. O pão
consagrado era servido não apenas na igreja, mas também nas casas, às pessoas
que estavam às portas da morte, como “alimento para a jornada”, e passou a ser
considerado útil para evitar desastres e pestes e para obter benefícios e
bênçãos.
A partir
daí, o passo seguinte foi estender a eficácia da Ceia do Senhor não somente aos
vivos, mas também aos mortos. A essa altura, o costume pagão de
fazer ofertas por parentes mortos e orar por sua alma no aniversário de sua
morte já havia se estabelecido na crença popular. Quando a doutrina do purgatório
foi estabelecida pelo papa Gregório, o Grande, a Ceia passou a ser interpretada
como uma oferta do próprio corpo e sangue de Cristo em favor do parente morto.
Logo se tornou uma crença estabelecida que a missa realizada em favor de
pessoas mortas podia reduzir as penitências e punições temporais, não apenas
aos vivos, mas também aos mortos, aliviando sua pena no purgatório.
Observe
como há um entrelaçamento de erros aqui. Primeiro, há o desvirtuamento da Ceia
do Senhor, que deixa de ser vista como um meio de graça e passa a ser vista
como uma cerimônia religiosa cada vez mais elaborada; depois, ela começa a ser
servida às pessoas que estavam às portas da morte como uma espécie de alimento
para sua jornada; depois, o pão começa a ser visto como uma espécie de amuleto
religioso capaz de prevenir pestes e tragédias; a seguir, há o sincretismo da
fé cristã com religiões pagãs, o que gera a contaminação dos costumes
religiosos do povo; surge, então, a doutrina do purgatório; por fim, a Ceia (e
a missa da qual faz parte) passa a ser concebida como tendo importantes efeitos
espirituais não apenas para os que participavam dela, mas também para os
mortos, em memória de quem as missas eram realizadas. Um erro doutrinário nunca
vem sozinho. Ele sempre produz outro ou foi produzido por outro: “um abismo
chama outro abismo” (Sl 42.7).
Diante de
tudo isso, a teologia reformada anuncia, com vigor e alegria: Sola
gratia! Somente a graça salva. Somos salvos não por missas realizadas
em nossa memória, nem por sacramentos ministrados a entes queridos, mas pela
graça soberana do Senhor.
3
- A compra da Salvação
Na medida
em que o evangelho era anunciado, as pessoas iam se convertendo e sendo
discipuladas e batizadas. Isso provocava uma mudança de postura e de hábitos em
grande parte dos convertidos, que vinham de religiões politeístas e tinham
costumes que não se harmonizavam com a fé cristã. É claro que não se podia
esperar que os crentes parassem de cometer pecados depois de terem sido
batizados. Os próprios apóstolos haviam ensinado isso muito claramente (Tg 3.2; 1 Jo 1.8).
No
entanto, os cristãos sempre alimentaram a esperança de que os novos convertidos
se abstivessem de pecados graves e, ao mesmo tempo, se empenhassem em seguir
continuamente os caminhos da santidade. Com o passar do tempo, surgiu a
necessidade de uma distinção entre pecados maiores (mortais) e menores
(veniais), que gradualmente foi colocada em prática.
Na
primeira categoria estavam os pecados considerados mais graves e que
supostamente tinham conseqüências sociais mais marcantes: assassinato, roubo,
adultério, infanticídio, envenenamento, apostasia, idolatria, feitiçaria e
assim por diante. Na categoria dos pecados veniais, ou menores, estavam
inseridos aqueles considerados menos graves, como falso testemunho, rancor,
ira, rixas, fraudes, difamação e pequenas desonestidades nos negócios. É claro
que essa divisão é muito subjetiva e totalmente arbitrária. Além disso, não tem
o menor embasamento bíblico (Tg 2.10).
Com o
passar do tempo, os cristãos começaram a tomar uma posição diferente com
relação aos pecados menores. A crença geral era que eles podiam expiar tais
pecados, tomando algumas atitudes, enquanto o sacrifício de Cristo ficava
“reservado” aos pecados mais graves. Embora esses pecados menores fossem
inevitáveis, o crente, em contraste com o incrédulo, tinha a vantagem de ser um
membro da igreja e poder apagar pessoalmente esses pecados, recebendo
pacientemente a punição estabelecida para eles, por meio da confissão pública
ou particular ou pela prática de boas obras (jejuns, esmolas e orações). Isso
deu origem às doutrinas católicas romanas da penitência e da confissão
auricular.
Imediatamente depois que os pecados eram
confessados ao sacerdote, este pronunciava o perdão, mas ainda tinha de impor a
penitência proporcional à severidade dos pecados confessados (orações ou boas
obras) para que os confessantes, dessa forma, ficassem livres, internamente, do
poder do pecado. Como as pessoas que se confessavam continuavam cometendo
pecados ao longo da vida, as penitências, via de regra, não podiam ser
completamente cumpridas nesta vida e o déficit tinha de ser pago no porvir, por
meio do sofrimento no purgatório.
Havia,
porém, uma forma muito mais fácil de a pessoa cumprir, total ou parcialmente,
suas penitências. A associação dessas três doutrinas (penitências, confissão
auricular e purgatório) deu origem à crença de que o tempo da penitência podia
ser abreviado e a própria penitência podia ser reduzida se caso o cristão
demonstrasse sincero e profundo arrependimento. A partir daí, desenvolveu-se o
costume segundo o qual os bispos perdoavam parte da punição ou transformavam
uma penitência severa em uma penitência mais leve em favor daqueles que se
mostravam zelosos em seu exercício penitencial.
A partir
do século 11, porém, esse relaxamento da penitência assumiu a forma de que toda
pessoa que cumprisse certa condição (como participar de uma guerra contra os
mouros, de uma cruzada ou pagar para que alguém fizesse isso em seu lugar, por
exemplo) podia obter perdão parcial ou total (indulgência) de seus pecados, o
que reduzia ou eliminava a penitência. Dessa época em diante, com a cooperação
do papado, as indulgências se tornaram tão numerosas que, finalmente, foram
mais elaboradas e se tornaram uma importante fonte de renda. Sua aquisição foi
facilitada e, por fim, as condições sob as quais podiam ser obtidas foram
destituídas de toda seriedade.
O maior
comerciante de indulgências se chamava João Tetzel. Embora exigisse
demonstrações de arrependimento para que a pessoa obtivesse uma indulgência,
não via problema em concedê-la a alguém que já havia morrido para que, assim,
seu sofrimento no purgatório fosse amenizado. Seu conceito, como ele mesmo
dizia, era de que “logo que uma moeda no cofre cai, a alma do purgatório sai”.
Por certa quantia, ele emitia cartas de indulgência para serem apresentadas ao
padre confessor para que ele concedesse plena absolvição depois que os pecados
fossem confessados no confessionário.
A
concessão de indulgências em troca de dinheiro acabou se transformando em um
comércio de coisas que nunca foram e não podem ser vendidas (perdão, remissão
de pecados, expiação). Por meio desse comércio, houve um retorno ao mesmo tipo
de comercialização rejeitado veementemente por Cristo, quando revirou as mesas
dos cambistas. Essa postura não se harmoniza com o ensinamento de Cristo, que
disse aos seus apóstolos: “De graça recebestes, de graça dai”.
No
entanto, deve ser observado que esse erro de comercialização da fé não ficou
restrito aos tempos medievais. Ele está presente hoje, mas, desta vez, entre os
evangélicos. Atualmente, temos visto uma ênfase exacerbada em uma doutrina
sobre o dízimo que não tem fundamento na Escritura, segundo a qual o cristão é
orientado a dar cada vez mais para receber bênçãos cada vez maiores de Deus. Os
católicos medievais vendiam o perdão; muitos evangélicos modernos vendem
bênçãos terrenas. Apesar dessa diferença, o princípio é o mesmo: benefícios
concedidos por Deus em troca de dinheiro dado à igreja. A ambos os grupos, a
teologia reformada afirma: Sola gratia!
4
- Opondo-se à Doutrina dos Méritos
Antes de
falar sobre a salvação graciosa de Deus, precisamos compreender o motivo pelo
qual precisamos de salvação e porque não podemos ser salvos pelos nossos
próprios méritos e esforços, mas somente pela graça de Deus. Para tanto é
necessário que atentemos para a doutrina bíblica sobre o alcance e os efeitos do
pecado conhecido como depravação total.
Essa
doutrina expressa o ensino bíblico de que o homem está morto em seus delitos e
pecados (Ef 2.1-2). Isso não significa que todos
os homens sejam igualmente maus, nem que o homem é tão mal quanto poderia ser,
alcançando, assim, o ápice da maldade. Também não significa que o homem esteja
completamente destituído de toda e qualquer virtude, nem que a natureza humana
seja má em si mesma. Essa doutrina ensina que, uma vez que o homem segue o
curso do pecado (Ef 2.1-2), ele está
completamente sujeito ao pecado, tendo motivações pecaminosas, inclinações
pecaminosas, facilidade para pecar, está espiritualmente morto e, por isso, é
incapaz de fazer ou querer qualquer coisa que o conduza à salvação, bem como é
totalmente incapaz de merecer a salvação mediante suas próprias obras.
O homem
não regenerado, que chamaremos de homem natural, pode, pela aplicação da graça
comum de Deus, amar sua família e ser um bom cidadão, cultivando elevadas
virtudes e valores morais, tais como a honestidade, a justiça, a bondade, a
coragem, etc. No entanto, nada disso está isento da mancha do pecado. Essa
mancha está em nossa própria natureza e, por isso, tudo o que fazemos é
imperfeito. O que é imperfeito não pode merecer o perdão perfeito de Deus.
Somos
todos pecadores e nosso salário, isto é, a recompensa natural por nossos
méritos, é a morte (Rm 3.23; 6.23). Para
recebermos vida, é preciso que Deus aja conosco de modo que vá além dos nossos
méritos, dando-nos aquilo que não merecemos. É justamente esse favor que
recebemos de Deus sem merecer que se chama “graça”. A salvação, segundo a
Escritura e a teologia reformada, não é fundamentada nos méritos humanos, mas
na graça de Deus.
Outro
efeito do pecado na vida humana é o de impedir que o pecador compreenda as
realidades espirituais necessárias à sua salvação (1 Co
2.14). O homem natural carece de uma capacitação do Espírito para que possa
discernir as realidades espirituais. Sem essa capacitação ele jamais
compreenderá a extensão e a gravidade de seu pecado e, conseqüentemente, jamais
compreenderá a sua necessidade de salvação. O homem natural está cego em seu
entendimento e os seus sentimentos estão corrompidos pelo pecado (2 Co 4.3-4).
A
natureza humana não é má em si mesma, isto é, em essência, porque foi criada
por Deus e vista por ele mesmo como sendo muito boa (Gn
1.31). Contudo sua atual condição é de total corrupção
ocasionada pelo pecado. Sendo essa corrupção uma condição da natureza humana,
está além de seu poder mudá-la. Isso só pode ser feito pela obra regeneradora
de Deus na vida do pecador.
Paulo,
escrevendo aos Efésios, dá mais um bom motivo pelo qual o homem natural é incapaz
de obter a salvação por seus próprios méritos. Ele diz que Deus “vos deu vida,
estando vós mortos em seus delitos e pecados” (Ef 2.1).
Um cadáver nada pode fazer neste mundo, nem mesmo em seu próprio favor,
no intuito de tirá-lo da morte. O mesmo acontece quando uma pessoa está
espiritualmente morta. Ela é totalmente incapaz de fazer ou mesmo de querer
qualquer coisa, mesmo que seja para que ela saia da morte.
Por tudo
isso, o ser humano é totalmente incapaz de, por si mesmo, livrar-se de seu
pecado e dos efeitos que o pecado produz em sua vida, inclusive no que diz
respeito à salvação. Diante dessa realidade, sua única possibilidade de salvação
está na graça de Deus.
Devemos
enfatizar, contudo, que a graça de Deus tem outro lado, que com freqüência nos
esquecemos: a obra sacrificial de Cristo. É um erro lamentável julgar toda a
verdade considerando apenas a parte que nos compete do todo. A graça de Deus se
evidencia nas obras da Trindade. O Pacto da Graça, por meio do qual somos
salvos, foi Pacto de Obras para Cristo. A nossa salvação é muito cara, custou o
precioso sangue de Cristo (1 Pe 1.18-20; At 20.28; 1Co
6.20). Isso longe de apontar para o suposto valor inerente de nossas
almas revela o amor gracioso de Deus que confere valor a nós.
5 - Conclusão
A
doutrina das indulgências e a prática da realização de missas em favor dos
mortos deram grande vigor à doutrina de salvação com base em méritos humanos.
Essa doutrina colocou em xeque a doutrina da salvação pela graça, retomada por
Lutero e enfatizada fervorosamente pela teologia reformada. Nada de méritos
humanos para a salvação. Nada de colaboração com Deus para a salvação. Somos
salvos pela graça. Sola gratia.
6 - Aplicação
Para ter
uma boa idéia do efeito devastador causado pela cobrança de indulgências na
Idade Média, assista ao filme Lutero. Você consegue perceber
algum reflexo dessa prática medieval na igreja contemporânea?
Leitura diária
Domingo – Tg 3.1-2 – Tropeçamos em muitas coisas
Segunda – 1 Jo 1.5-10 – Todos temos pecados
Terça – Tg 2.1-13 – Se tropeçar em um só ponto
Quarta – Ef 2.1-3 – Mortos em delitos e pecados
Quinta – 1 Co 6-14 – Discernimento espiritual
Sexta – 2 Co 4.1-6 – O evangelho encoberto
Sábado – At 26.16-18 – A ação da graça
Domingo – Tg 3.1-2 – Tropeçamos em muitas coisas
Segunda – 1 Jo 1.5-10 – Todos temos pecados
Terça – Tg 2.1-13 – Se tropeçar em um só ponto
Quarta – Ef 2.1-3 – Mortos em delitos e pecados
Quinta – 1 Co 6-14 – Discernimento espiritual
Sexta – 2 Co 4.1-6 – O evangelho encoberto
Sábado – At 26.16-18 – A ação da graça
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